Série de eventos em casarão no centro de São Paulo questiona os limites da sexualidade, do desejo e as ameaças à sua liberdade
Por
trás de uma porta escondida na Rua Mauá, região central de São
Paulo, um casarão de três andares tem a missão de jogar luz sobre
temas-tabu na sociedade contemporânea: os (trans)gêneros, seus
limites e subversões. Afinal, o que é gênero? Quais os limites da
orientação sexual? Até que ponto somos imutáveis?
A
primeira Ocupação [SSEXBBOX],
no sábado 25, trouxe ao espaço cultural Casa da Luz ativistas,
acadêmicos e artistas que carregam o direito de escolha sobre a
identidade de gênero como principal bandeira. Ponto que, ressaltam,
nada tem a ver com a orientação sexual de cada um.
“Eu
tenho uma identidade política, que é a de homem trans, mas tenho a
minha pessoal, que é de bissexual”, disse aCartaCapital
Luciano
Palhano, do Instituto Brasileiro de Transmasculinidade (Ibrat), ao
ressaltar que não é uma pessoa binária, limitada ao feminino e
masculino.
“Gênero
é uma construção social que permite que a gente exerça um papel
na sociedade. Particularmente, considero isso algo muito opressor,
que define lugares a partir de posições de poder, quando nenhuma
identidade deve ser engessada”.
Em
um debate sobre homens transgêneros (que nasceram mulheres e
passaram por tratamento hormonal e/ou cirurgias para se tornarem
homens), o representante do Ibrat fez o público rir ao lembrar de um
episódio constrangedor em um bar com os amigos no Recife, em
Pernambuco.
“Queríamos
usar o banheiro feminino, pois só havia mictórios no outro. Tentei
explicar aos garçons, mas não deu certo e eles nos obrigaram a usar
o banheiro masculino”, contou ao deixar claro que é dono de uma
vagina e não de um pênis. “Fizemos xixi no chão, pagamos a conta
correndo e fomos embora.”
Sua
mesa abriu o evento que tem como principal objetivo angariar recursos
para uma conferência internacional sobre transexualidade
em
agosto, em São Paulo. Nele estavam presentes o músico e ativista
trans Erick Barbi, a psicóloga Ilana Mountian, a pesquisadora do
Núcleo de Identidade de Gênero e Subjetividades da UFSC Simone
Ávila e o ator e ativista Leo Moreira Sá.
Nascido
Lourdes, Leo foi baterista da banda punk As Mercenárias, casado por
dez anos com a travesti Gabi e carrega na bagagem a dolorosa vivência
do cárcere, que foi decisiva para deixar a sua parte Lourdes para
trás.
“Eu
já era reconhecido como homem, mas o homem que minhas companheiras
de cela esperavam que eu fosse era o homem do crime: marido, macho,
ativo, misógino, machista e criminoso”, conta ao analisar como
teve de deixar um discurso relativamente libertário no qual se
formou nas ciências sociais da USP para adotar um autoritário para
sobreviver na prisão.
“Se
te chamam para a luta, você tem que ir. Não pode recusar, ou não
terá respeito de jeito nenhum. O sistema penitenciário vai te
quebrando, e fui desconstruindo algumas ‘verdades’. De certa
forma, tive de me olhar”, afirma.
Olhar
para o gênero que se quer seguir, no entanto, não é uma escolha
definitiva. Para o psicólogo Luis Saraiva, do Laboratório de
Estudos da Família, Relação de Gênero e Sexualidade (Lefam) da
USP, gênero é algo que inventamos na tentativa de nos definir.
“Queria crer que temos gêneros infindáveis dentro de nós, mas a
vida que temos hoje nos convida a escolher entre um ou outro gênero”,
observa o também membro do Conselho Regional de Psicologia (CRP).
“Se
criamos isso, podemos inventar o quanto quisermos e transitar (entre
gêneros).
As coisas podem mudar dentro da gente”, disse o pesquisador que se
define como "viado" e não gay, pois diz não carregar
todos os pré-requisitos de um homem. “Sem ser homem, eu não posso
ser gay, então prefiro ser 'viado'."
No
segundo debate do sábado, em que esteve ao lado da cartunista Laerte
Coutinho,
da representante do Mães pela Diversidade Majú Giorgi e do membro
do Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual Luis Arruda, Saraiva
mostrou preocupação com o polêmico Estatuto da Família.
O
Projeto de Lei 6583/13, que considera apenas a união entre homem e
mulher para constituir uma família e restringe a possibilidade de
adoção por casais homossexuais, começará a ser debatido em
audiências públicas nos estados do Acre, Amazonas, Mato Grosso do
Sul, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo pela comissão
parlamentar responsável por sua aprovação no Congresso.
Saraiva
comparou o teor do estatuto ao do projeto de “cura gay”, que
determinava o fim da proibição pelo Conselho Federal de Psicologia
de tratamentos para reverter a homossexualidade. “Depois de três
anos nos desgastando contra a ‘cura
gay’,
vamos nos ocupar desse estatuto. É uma imbecilidade dizer que
família é um conjunto composto por homem, mulher e seus
descendentes e que sua função é procriar”, disse Saraiva.
O
psicólogo lembrou também que o CRP lançou recentemente o Manifesto
em Defesa da Família Brasileira com o intuito de atrair para a
discussão setores mais conservadores. A ideia é mostrar que o
próprio estatuto coloca em risco a família, uma vez que restringe
outras possibilidades de modelo familiar.
De
acordo com o advogado Luis Arruda, do ponto de vista jurídico, o PL
6583/13 é inconstitucional e deve ser barrado no Supremo Tribunal
Federal caso seja aprovado no Legislativo. “Precisamos lembrar que
o grande articulador disso tudo se chama Eduardo
Cunha.
Por que projetos como o Estatuto da Família e o da ‘cura gay’
são postos em pauta? Porque servem de cortina de fumaça para a
aprovação de outras coisas que querem”, disse sobre a
terceirização ou mesmo o financiamento privado de campanhas
eleitorais.
Apesar
de juristas entenderem atualmente que o conceito de família deve ser
ampliado e ter o afeto como elemento primordial, o estatuto vai na
direção contrária. “O Estatuto
da Família não
quer deixar eu ter netos”, reclamou Majú Giorgi, do Mães pela
Diversidade, cujo filho é gay. “Cada um tem de escrever seu
script, a sua história da maneira como for feliz”.
A
ideia de que precisamos de um pai e uma mãe é muito tradicional e,
segundo Laerte, vem caindo assim como os paradigmas em relação
àquilo que devemos ou podemos ser. “Os enquadramentos acabam
limitando e impondo determinados comportamentos. Se você é
homossexual, tem de responder por uma série de padrões. E a gente é
tanta coisa!”, disse a CartaCapital. “Eu primeiro me
descobri homossexual, depois bissexual, e muitos anos depois
transgênero. Tecnicamente, estou habilitada para fazer sexo com
qualquer pessoa”, ironizou.
Além
das mesas de debate, cineclube, videoinstalações e performances, o
casarão na região da Luz abrigou em suas paredes arte naif que
contesta os limites da sexualidade, exposição de fotos impressas em
papel e em tecido, como a composição de uma barriga estriada em
cima da púbis ou de uma vagina menstruada sendo masturbada.
Expressões artísticas que causam o estranhamento necessário para o
público questionar conceitos como libido, sexo e sua relação com
gênero.
As
ocupações [SSEX BBOX] serão quinzenais, das 12h às 22h, na Rua
Mauá, 512. O próximo encontro está previsto para 9 de maio, com
entrada a 25 reais. O valor servirá para financiar a conferência
internacional de agosto.
Para
o evento, estão confirmados nomes como o ativista Buck Angel, homem
transexual e ícone LGBTQI (sigla para lésbicas, gays, bissexuais,
trangênero, queer e intersex) nos Estados Unidos, e o filósofo
espanhol Paul B. Preciado, que lançou em fevereiro oManifesto
Contrassexual, livro ilustrado por Laerte que desconstrói os
estereótipos homem/mulher, homo/hetero, natural/artificial através
de análises sobre o dildo (espécie de vibrador sem motor), a
história do orgasmo e a atribuição de sexo.
O
[SSEX BBOX] – Sexualidade Fora da Caixa é um projeto de justiça
social que desde 2009 busca oferecer um espaço de discussão sobre
sexualidade e gênero a partir do relato das experiências de
ativistas, educadores e artistas. Seu formato primordial inclui a
realização e exibição de documentários sobre o tema, seguido por
uma mesa.
Segundo
o coordenador do projeto, Priscilla Bertucci, as pessoas sentem
necessidade de mais espaços para debater a teoria queer – termo
proveniente do inglês para pessoas que não seguem o padrão da
heterossexualidade ou do binarismo de gênero em contraposição ao
termo cis, designado àqueles confortáveis com o sexo e gênero em
que nasceram. “Há muito sofrimento quando você tem de se apegar a
apenas uma possibilidade de gênero”, disse Priscilla.
Fonte:http://www.cartacapital.com.br/
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