Na era da exaltação da juventude, a chegada da velhice é ainda mais complicada para os casais do mesmo sexo
Com
sorte, todos nós envelheceremos. Porém, mesmo esse processo sendo
inerente ao ciclo, a passagem entre a idade adulta e a velhice
carrega fortes preconceitos em uma sociedade que celebra a juventude
como a fase mais importante da vida. Dessa forma, até mesmo
expressões de carinho são taxadas, como se aqueles que se amam
tivessem apenas alguns anos para expressar esse sentimento.
O
beijo protagonizado semana passada pelas atrizes Fernanda Montenegro
e Nathalia Timberg está longe de causar discussões apenas por ter
sido entre duas mulheres. Ao demonstrar o afeto carnal entre pessoas
idosas — as duas têm 85 anos —, a novela Babillônia trouxe à
luz uma discussão que envolve dois preconceitos: a sexualidade e o
envelhecer.
"Ao
mostrar esse beijo, a novela só tem a colaborar, porque faz com que
as pessoas sejam obrigadas a ver aquela relação de outra forma.
Isso pode ajudar os casais homossexuais a se tornarem mais aceitos",
garante a profissional de educação física Ida Helena de Oliveira
Lara, 51 anos. Ela, que assumiu a homossexualidade aos 23, acredita
que se manter fora do armário depois dos 50 é sim um ato político,
como define Teresa, personagem de Fernanda Montenegro, em uma das
cenas do folhetim.
Ida
mantém hoje um relacionamento com uma mulher de 63 anos que saiu do
armário há pouco tempo. A educadora diz que é visível o quanto a
decisão de não esconder mais a sexualidade fez bem à companheira.
"E ela saiu abertamente, assumindo também nosso relacionamento
para todos." Identificar-se socialmente como homossexual, na
maioria dos casos, implica em vencer os inimigos internos e
reconhecer os de fora.
Afinal,
é partir dos avanços das minorias que os setores majoritários
tendem a mostrar descontentamento de forma mais visível. Quando isso
se soma à idade, a combinação não é facilmente suportada. "As
pessoas mais velhas não correspondem aos ideais estéticos atuais,
sendo alvo de apartação e bullying. Eu mesmo, com quase 69, já fui
chamado de maricona gagá dentro do movimento", afirma Luiz
Mott, fundador do Grupo Gay da Bahia e professor de antropologia da
UFBA.
Mott
aponta ser comum que mulheres lésbicas se assumam quando estão mais
velhas, por conta das obrigações que ainda são impostas
socialmente a elas. "Muitas também demoram por uma homofobia
internalizada, de quem viveu a juventude em uma época na qual
assumir-se gay era um ato de suicídio social", explica. Para
ele, o beijo entre as personagens da novela representa uma oxigenação
nos movimentos de libertação e afirmação. "E também serve
para chamar a atenção das autoridades às políticas públicas
direcionadas ao público LGBT da terceira idade", completa.
Em
nota, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República
(SDH/PR) informa que não há registro de denúncias de violência
homofóbica contra pessoas idosas no Disque Direitos Humanos, segundo
o Departamento de Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos. E afirma
que, independentemente da sexualidade, a prioridade da SDH é a
garantia e promoção dos direitos fundamentais de toda e qualquer
pessoa idosa. O reflexo de uma maior tolerância aos casais
homossexuais se reflete, inclusive, na longevidade dos
relacionamentos. Osmir Messora Junior, aposentado de 53 anos, mantém
uma relação há 30 com o professor universitário Carlos Eduardo
dos Santos, 55.
De
acordo com ele, a união longeva entre homossexuais era algo bem
menos comum na sua juventude, muito por conta do preconceitos que os
próprios gays ainda mantinham internamente. "Era mais difícil
eles aceitarem a ideia de um casamento porque o preconceito era muito
grande. Hoje, vivemos um período de mudanças significativas nesse
universo, e isso veio associado à maior tolerância", acredita.
Para Carlos Eduardo, algo fundamental para que eles sejam
respeitados, independentemente da idade, é a forma como encaram a
própria sexualidade.
"Hoje,
com 55 anos, vejo que o significado de amor é muito mais parceria e
união que necessariamente sexo. Não que ele não seja importante.
Mas não é disso que você viverá. Em um relacionamento
heterossexual ou homossexual, a convivência será do mesmo modo. E a
relação de respeito deve existir sempre." Assim, ao estarem
juntos há três décadas — e pais de quatro meninos, adotados em
2013 —, os dois compreendem que são, de certa forma, um exemplo
para aqueles que não aceitam famílias formadas por casais
homossexuais.
"Ao
longo desses 30 anos, temos feito tudo que é possível para provar
que nós estamos juntos porque queremos. Se isso serve como exemplo,
por que não? Isso não quer dizer que o nosso relacionamento não
teve momentos difíceis, mas sempre achamos que era melhor apostar um
no outro", garante Carlos Eduardo. Seja com atrizes, seja com
personagens reais, entender que a sexualidade é algo que não muda
com a idade é uma forma de respeitar a si mesmo. Algo que, muitas
vezes, não acontece com quem passa dos 50.
"O
preconceito com as pessoas mais velhas no ambiente gay existe. E isso
faz até mesmo com que seja difícil para eles levantarem bandeiras.
Há muitos casos de gays idosos que voltam para o armário a fim de
conseguir um lugar em que serão cuidados nessa fase da vida",
assegura Osmar Rezende, presidente da ONG Libertos. Ele conta,
inclusive, casos de travestis que precisam se vestir com roupas
masculinas para conseguir vagas em asilos. "Dá para imaginar a
dor que é abrir mão da sua liberdade para ter alguém que cuide de
você?", questiona.
Rezende
também aponta a questão das políticas públicas como algo
necessário para garantir cuidados específicos para homossexuais da
terceira idade. "Não adianta apenas sair do gueto. É preciso
lutar também por eles." O professor universitário José
Zuchiwschi, 56 anos, diz que a sociedade discrimina qualquer um fora
da zona considerada como juventude. "E isso atinge também a
comunidade LGBT, principalmente porque o mainstream da cultura gay é
direcionado aos mais jovens." Na opinião dele, que é
homossexual, ao colocar duas mulheres para interpretarem um casal
homoafetivo mais velho, a novela mostra que é possível vencer a
formação educacional, familiar e cultural que estrutura ainda a
personalidade de muitas pessoas a não aceitarem a
homossexualidade.
"Mesmo
com o preconceito, hoje, há uma pressão bem menor para que os gays
mantenham um padrão heteronormativo de comportamento. E isso se deve
aos movimentos sociais que trouxeram nova visibilidade. Discutimos
mais o preconceito, o que também fez com que as forças
conservadoras se movimentassem", explica.
"Os
mais jovens precisam lembrar daqueles que lutaram nas ruas. Essa
bagagem história facilita a vida da juventude. É como se houvesse
alguém dizendo: ‘Vocês não estão sozinhos’", destaca.
Além das lutas que preservaram a dignidade dos homossexuais mais
velhos, o professor aponta que a expressão da sexualidade nessa fase
da vida deve ser sempre celebrada. "Não há mais uma
demonstração combativa. Mas é preciso se manter fora do armário
porque você demonstra que isso é algo seu e sempre será, tornando
o diálogo mais fácil e a solidão menor.
Fonte:http://www.correiobraziliense.com.br/
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