A partir do assassinato de travesti, rede de TV do Catar fez uma ampla reportagem sobre o tema com dados do grupo o grupo Transrevolução, sediado no Rio de Janeiro.
Traduzido da matéria de Donna Bowater e Priscilla Moraes para o site Al Jazeera
Duas sacolas plásticas sujas continham a
fantasia de Carnaval em que a travesti Piu (cujo nome de registro era
Claudio da Silva) trabalhava antes de ser torturada
e morta. Em uma estava uma montanha de fios de contas brilhantes,
na outra, um vestido vermelho bordado.
Travesti desde a infância, Piu era conhecida
como um homem de 24 anos e como uma sambista, dançarina de passos
rápidos na Beija-Flor, vencedora do Desfile de Escolas de Samba do
Rio de Janeiro esse ano.
“Meu filho era um anjo, e seu negócio era
apenas o samba”, relatou Ângela Maria da Silva, sua mãe, à Al
Jazeera, com seu corpo emaciado empoleirado como um pássaro na
entrada da casa humilde de sua família numa favela controlada por
gangues.
“Acabou tudo para mim agora. Eu não tenho
mais felicidade. Às vezes eu passo as primeiras horas da manhã
chorando.”
Transfobia generalizada
Piu é mais um do número crescente de vítimas
transgênero no Brasil, o país com o
maior número de pessoas transgênero assassinadas no mundo, de
acordo com pesquisa feita pelo grupo Transgender Europe. “O Brasil
permanece o país com os números absolutos mais altos”, aponta
Carla LaGata, pesquisadora-chefe na Transrespect versus Transphobia
Worldwide (TvT) e pesquisadora sênior na Transgender Europe.
O número de mortes por homofobia e transfobia
no Brasil aumentou de 1023 em 1995 para 1243 em 2003, de acordo com o
Grupo Gay da Bahia, primeira organização de luta pelos direitos de
gays do Brasil.
Mas esses números, alertam, só contabilizam
as mortes relatadas e documentadas; a quantidade verdadeira de crimes
certamente é maior.
Diferente de muitas outras, a morte de Claudio
em janeiro ganhou
as manchetes depois que um
vídeo mostrando sua tortura foi colocado no Facebook.
Nele, sangrando e confuso, Piu implora para
pelo menos dois homens pararem de espancá-la enquanto eles tentam
arrancar dela uma confissão de que ele trabalharia para uma milícia
como informante.
Seu corpo foi encontrado com facadas e seis
ferimentos de bala. Ninguém foi preso por seu assassinato.
“Parece que ele trabalhava para alguma
milícia?”, pergunta Luiz Henrique dos Santos, em frente ao quarto
que foi da cunhada. Um colchão fino de espuma estende-se no chão de
concreto do quarto pequeno e sem janelas.
A família não conta com água encanada e um
lençol é tudo que garante alguma privacidade em sua casa.
“Todo mundo aqui sabia que ele não estava
envolvido”, conta Silva. “Quando alguém te força, você diz
coisas que não fez.”
Para sua família, a morte de Piu não tem
explicação.
As opiniões estão divididas em sua amada
escola de samba, Beija-Flor de Nilópolis.
Há aqueles que concluem que Piu estava sim
envolvido com alguma milícia, e há aqueles que suspeitam que ele
foi vítima de transfobia.
No vídeo, um de seus atacantes chega a usar o
xingamento “arrombado”.
“Tem que ter sido discriminação das pessoas
que mataram ele”, especula Carlos Vinícius dos Reis, porteiro da
Beija-Flor.
“Eu não acredito que ele estava envolvido
com uma milícia. Eles forçaram ele a dizer essas coisas”, disse.
Apesar de todos na Beija-Flor negarem
enfaticamente que têm preconceitos contra pessoas trans, alguns
admitem que Piu e outras dançarinas trans eram consideradas por
alguns motivo de chacota ou de escárnio.
“Roupas malucas”
“Você tem que ver uma foto dele na pista,
como ele se vestia, pra ver como ele era maluco”, lembra o
percussionista Jean Pierre da Silva, 19.
“Ele vestia roupas engraçadas, uma peruca
diferente todo dia, penas na cabeça, maquiagem maluca – ele
parecia um palhaço de festa infantil.”
“Pessoas trans são tratadas normalmente”,
insiste. “Mas tem umas que, porque são trans, acham que todos os
homens da pista gostam. Elas acham que podem ficar passando a mão,
daí rola briga.”
De acordo com o relatório da Transgender
Europe, uma das razões para a alta quantidade de assassinatos de
trans no Brasil é a transfobia generalizada que emergiu durante a
ditadura, que durou de 1964 a 1985, depois que o presidente João
Goulart foi deposto por um golpe militar.
“Pessoas de gêneros alternativos/trans
tornaram-se um alvo da repressão militar, já que eram vistas como
uma ameaça aos ‘valores da família brasileira'”, aponta o
relatório.
Muitas pessoas transgênero foram forçadas a
se prostituir porque eram marginalizadas e discriminadas no local de
trabalho e lhes restavam poucas outras oportunidades.
Como resultado, prostitutas são o maior grupo
de vítimas de violência nas Américas Central e do Sul, alerta o
relatório.
Se antes o termo “travesti” era associado
com atores de teatro transgênero populares, aceitos publicamente, a
ditadura realinhou o termo com a prostituição e o crime.
“A polícia militar continuou a caçar
pessoas de gêneros alternativos/trans, agora com o apoio dos ditos
esquadrões da morte e grupos justiceiros”, continua o relatório.
Expectativa de vida
Estima-se que a expectativa de vida para
pessoas trans no Brasil seja de por volta de 30 anos, de acordo com o
grupo Transrevolução, sediado no Rio de Janeiro, que luta pelos
direitos de pessoas transgênero. A expectativa de vida média do
brasileiro é de 75 anos.
A ex-chefe da Secretaria dos Direitos Humanos
da Presidência da República, Ideli Salvatti, diz que grupos LGBT
culpam a falta de legislação como a principal razão da violência
contra brasileiros gays e transgênero, e afirma que o governo está
tentando corrigir isso.
“Um projeto de lei que criminaliza a
homofobia e a transfobia tem todo o apoio da presidente Dilma
Roussef”, Salvatti afirmou à Al Jazeera.
“Eu sou contra qualquer tipo de violência
contra as pessoas. No caso específico da homofobia, eu acho que é
uma ofensa contra o Brasil. Eu acho que nós temos que criminalizar a
homofobia, isso não é algo com que nós podemos conviver.”
Salvatti, que recentemente deixou o cargo,
também disse que o segundo centro de direitos LGBT do país será
inaugurado em São Paulo nos próximos meses, e que o Ministério da
Educação agora aceitará o nome social dos alunos nos exames
vestibulares, ao invés de insistir nos nomes de nascimento.
“Nós criamos políticas públicas
direcionadas a promover os direitos LGBT da população, mas é
essencial que haja uma legislação específica”, continuou
Salvatti.
Mas um coordenador governamental do Rio de
Janeiro, que pediu para não ser identificado, disse que a lei contra
a homofobia foi engavetada.
“Há muitos obstáculos”, afirmou o
funcionário público, que é um ativista LGBT há 20 anos.
“Nunca houve vontade política de se votar
nesse projeto. Enquanto não houver uma posição pública forte e
clara do nosso governo sobre a impunidade desses crimes, milhões de
cidadãos e suas famílias vão continuar à mercê desse ódio, que
pode nos acertar a qualquer dia.”
“Não sei se estou viva amanhã”
Maria Clara Araújo, 18, a primeira transexual
negra a entrar numa universidade federal do Brasil, apontou que o
apoio de sua família foi essencial não apenas para que ela
conseguisse alcançar suas ambições acadêmicas, mas também para
sua segurança.
“Eu não acho que minha mãe jamais me
deixaria sozinha”, afirma Araújo, hoje estudante de pedagogia na
Universidade Federal do Pernambuco.
“Eu estou ciente de que minha expectativa de
vida é de 30 anos e eu preciso que alguém me proteja. Se eu não
tivesse a ajuda da minha mãe e do meu pai, eu provavelmente teria
que me prostituir para me sustentar.”
Ela disse que a realidade das pessoas
transgênero seria muito diferente se lhes fossem dados os direitos
essenciais.
“Se nós tivéssemos lares, emprego, uma
educação, nós não teríamos tanta tendência [de viver nas ruas].
Se as famílias apoiassem e dessem uma chance para essas meninas,
elas morreriam menos.”
Para Piu, o pouco dinheiro que ele ganhava
fazendo bicos era gasto no samba, seu primeiro amor.
Além da Beija-Flor, sua família lembra que
ele também participava de algumas das maiores escolas de samba da
cidade, como a Imperatriz, Salgueiro e Mocidade.
“Se tem uma coisa que ele gostava mais do que
samba, isso ainda não foi inventado”, afirma Luiz.
Ele não fazia planos, lembraram seus
familiares. Ele ia para a escola, mas não estudava. “Ele só
pensava sobre o dia de hoje”.
“Eu costumava dizer para ele, ‘economiza um
dinheiro'”, disse sua irmã, Monica, à Al Jazeera.
“Mas ele não economizava. Ele dizia que
tinha que gastar tudo. ‘Ah, eu não sei se vou estar vivo amanhã’,
ele dizia.”
Fonte:http://www.ladobi.com/
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