Temos acompanhado nas últimas semanas em Campinas uma luta dos movimentos sociais, feministas, LGBT e de educadores contra a proposta de ementa da Lei Orgânica do Município elaborada pelo vereador Campos Filho (DEM) que proíbe a inclusão e o debate dos termos “gênero” e “orientação sexual” nas escolas e também a controversa aprovação de um Plano Municipal de Educação que simplesmente ignora todas as discussões ocorridas nas Conferências Municipais da Educação.
A proposta de silenciamento deste debate, que tem sido disputado em contexto nacional (a exemplo da retirada da expressão ‘igualdade de gênero, raça e sexualidade’ do Plano Nacional de Educação em 2014), coloca em cheque o papel da escola enquanto responsável por promover uma educação com os princípios de pluralismo de ideias, respeito a liberdade e apreço a tolerância, e contraria a própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB).
A demanda do debate de gênero e orientação sexual tem se tornado cada vez maior devido a visibilidade dos debates feministas e de questões relacionadas a sexualidade dos e das jovens.
Os últimos anos vêm sendo marcados pelo fortalecimento dos movimentos feministas e de diversidade sexual, sua maior presença na mídia, ampliação dos debates institucionalizados e incidência de políticas públicas específicas. Além disso, a dinamicidade da transmissão da informação na era da internet (nem sempre embasadas de maneira crítica) parecem ter estimulado ainda mais a curiosidade dos e das adolescentes e crianças, o que fez surgir novas situações (ou maior visibilidade a situações que já aconteciam) que alunos e professores estão vivenciando e a necessidade latente de se erradicar as violências cotidianas que adolescentes tem sofrido no ambiente escolar em decorrência de sua orientação sexual e identidade de gênero.
O debate feito nas escolas visaria então proporcionar elementos para reflexão e promover o reconhecimento das diferenças como forma de superarmos os preconceitos e desigualdade de oportunidades que são vivenciados por mulheres, lésbicas, gays, transexuais, dentre outros.
Muitos dos que são contra esse debate, ainda incipiente nas escolas, não compreendem de fato do que se trata a discussão que é nomeada de maneira grosseira e equivocada como “ideologia de gênero”. Vale lembrar que o debate de gênero e orientação sexual é uma demanda social a partir de vivências e experiências que já existem e as escolas têm se percebido como um espaço estratégico no combate a discriminações e preconceitos, portanto não se trata de uma imposição ideológica.
A ampliação do diálogo fortalece uma visão mais compreensiva do “outro” e é somente a partir dele que podemos construir uma sociedade mais justa e igualitária, repensando constantemente nossas práticas e julgamentos. Uma educação libertadora, livre de preconceitos e de discriminação, desconstruindo desigualdades, naturalizações e privilégios possibilita – através de uma vivência e experiência diversa – a construção de sujeitos e sujeitas políticas mais cidadãs, conscientes de seu papel na sociedade e no cotidiano como pessoas que respeitam umas as outras e vivem sob o princípio máximo da igualdade (previsto inclusive na nossa Constituição Federal).
Por isso, nós da Coletiva das Vadias nos posicionamos contra uma emenda que visa proibir um debate que tem sido frutífero e propositivo no combate das desigualdades e na promoção do respeito as diferenças.
Por que Gênero incomoda?
O termo gênero foi criado para distinguirmos a dimensão biológica da social, ou seja, embora existam “machos” e “fêmeas” na espécie humana, a forma de ser, agir, identificar-se enquanto “homens” e “mulheres”são construídos socialmente. Daí os estereótipos comuns de que os homens são mais racionais e as mulheres mais sensíveis, que os homens são mais fortes e as mulheres mais frágeis. Quando não concordamos com essas características construídas socialmente ou quando não nos identificamos com elas o resultado é preconceito, limitação das oportunidades e violência.
Por isso, gênero é produzido socialmente e não se relaciona com a anatomia do corpo.
Quando observamos uma série de dados que traduzem desigualdade entre homens e mulheres, como exemplo: maior parte dos postos de direção são ocupadas por homens, diferenças salariais (homens recebem mais) em iguais funções exercidas por mulheres, divisão desigual de trabalho no ambiente doméstico, no cuidado familiar, dentre outras, o conceito de gênero nos ajuda a entender que essas desigualdades não são naturais mas construídas socialmente e que os lugares “naturalmente” destinados a homens e mulheres podem ser modificados e transgredidos.
São estes mesmos “papéis sociais” que permitem que a violência contra as mulheres seja endêmica na nossa sociedade, é pelo fato de as mulheres serem consideradas mais frágeis ou não sujeitas de si, passíveis de dominação, que são impedidas de ocuparem o espaço público da mesma forma que o fazem os homens, que são silenciadas ou não respeitadas quando proferem opinião, que seus corpos são tratados como objetos sexualizados, disponíveis, que têm medo de andarem sozinhas nas ruas a noite pela iminência do estupro, por exemplo.
O conceito de gênero ajuda a desnaturalizar as desigualdades que são ocultadas através de argumentos de “diferentes capacidades”, “aptidões natas”, como se o homem fosse naturalmente dado a exercer os melhores cargos e a mulher naturalmente apta a apenas realizar o trabalho doméstico e de cuidado, por exemplo.
Talvez essa seja a origem do incômodo. Afinal, o conceito de gênero nos ajuda a pensar que tais “papéis sociais” foram historicamente construídos (privilegiando uns em detrimentos aos outros) e ao contrário, pensamos que as mulheres podem e devem estar onde quiserem: na engenharia, na informática, nas escolas, na ciência…Acreditamos que não é porque se nasce mulher que automaticamente se deseja e está apta para exercer a maternidade, por exemplo.
Tudo são escolhas e o conceito de gênero nos auxilia a não limitar essas escolhas de profissão, de gosto, de modo de se vestir, de lazer, de desejo, etc. Uma mulher pode ou não gostar de rosa, pode ou não se maquiar, pode ou não ser mais emotiva, pode ou não dirigir um caminhão, pode ou não jogar futebol e o que definirá tudo isso são suas ESCOLHAS e não o fato de ter nascido mulher. E o mesmo vale para homens.
E o debate sobre gênero nas escolas visa propagar o RESPEITO às diferentes escolhas e vontades, e não rechaçar quando uma menina ou um menino não correspondem a estes “papéis”que são esperados de cada um.
Orientação sexual
Sexualidade é o termo abstrato que utilizamos para nos referir as capacidades relacionadas ao sexo.
A orientação sexual se refere ao sexo pelo qual as pessoas se sentem atraídas, para o qual direcionam seus desejos e afetos. É importante considerar que a orientação sexual existe sem que as pessoas tenham um controle direto sobre ela.
Tratar apenas como “opção”, enquanto escolha, nos leva a compreender que é sempre mais fácil escolhermos a heterossexualidade, que é orientação mais aceita atualmente, em relação a demais formas que são discriminadas.
No entanto, não se trata de algo que se escolhe de forma totalmente voluntária e que se modifica de acordo com convivências. Vivemos em um contexto de supervaloração da heteronormatividade como orientação sexual tida enquanto mais “saudável”, “normal”, “correta” e naturalmente esperada pela sociedade em detrimento das demais orientações.
A manifestação da sexualidade pode aflorar em todos as faixas etárias, em especial naadolescência, portanto, ignorar ou reprimir o debate não é a resposta mais adequada para que esses jovens cresçam encarando todas as formas de sexualidade como saudáveis e naturais, compreendendo a diferença e respeitando seu próprio tempo e o das demais pessoas.
Um jovem que se descobre enquanto heterossexual possui muito mais tranquilidade e naturalidade para tratar e exercer sua sexualidade do que aquele que se descobre enquanto homossexual ou transgênero, tendo estes últimos que ora esconder seus impulsos e desejos, ora lidar com violências cotidianas por colegas, família e os próprios educadores. Por isso, cabe à escola compreender e educar para o respeito a todas as formas e manifestações de sexualidade de forma a não reproduzir estereótipos e preconceitos, prevenindo assim casos de violência a que jovens estão sujeitos e sujeitas simplesmente por se desviarem do que é considerado natural.
Identidade de gênero
A identidade de gênero é muitas vezes incompreendida e confundida com orientação sexual. As duas são dimensões diferentes. A identidade de gênero remete à constituição do sentimento de identidade, nos ajuda a pensar o lugar do indivíduo no interior de uma cultura e que, nem sempre, corresponde ao sexo. Uma pessoa que nasceu do sexo masculino pode ter a sua expressão de gênero como mulher; assim como uma pessoa que nasceu do sexo feminino pode ter sua expressão de gênero como homem. Essas são as pessoas trans, pois transformam o destino do gênero que lhes foi socialmente imputado de acordo com a sua genitália (pênis ou vagina). Pessoas transexuais podem ser heterossexuais, lésbicas, gays ou bissexuais; assim como as pessoas cis (que vivem sua identidade de gênero de acordo com o destino que é esperado a partir de sua genitália).
A vivência discordante de um gênero (que é cultural, social) com o que se esperaria de alguém com determinada genitália não deve ser tratada como uma doença, mas sim como uma questão de identidade.
Quando uma pessoa tem uma identidade de gênero diferente do que foi esperado socialmente a partir da sua genitália ela passa por um processo que chamamos de transformação. Durante esse processo, que muitas vezes acontece na adolescência ou no início da fase adulta, existe uma dificuldade muito grande de socialização em diversos ambientes, sendo o ambiente escolar um dos locais de muita dificuldade. A persistência de homens e mulheres trans* na escola é muito difícil pois são constantemente agredidas pelos colegas, professores e funcionários na escola; criando uma situação de desconforto até para a utilização do banheiro, por exemplo.
Respeitar a identidade de gênero, é reconhecer que as pessoas são diferentes, é respeitar a diversidades das identidades sociais.
É somente com a promoção de uma educação que ensine a respeitar as diferenças que poderemos combater os altos índices de morte das população trans* na sociedade e sua evasão escolar, tendo em vista que ao não serem reconhecidas e respeitas, muitas pessoas trans abandonam a escola, por não se sentirem incluídas, por não conseguirem conviver em ambiente tão hostil.
Violência
A intolerância, machismo, homofobia, transfobia e racismo são vivenciados diariamente por mulheres, gays, lésbicas, travestis, transexuais, negros, indígenas, dentre outros são expressas em dados alarmantes de violência.
Por isso, quando defendemos o debate sobre gênero e diversidade sexual dentro das escolas estamos atribuindo a educação como estratégico e importante papel no combate ao preconceito e violência vivenciados por esta população.
Sabemos que a violência contra mulheres e a população LGBTT no Brasil é endêmica.
O Mapa da Violência 2012 nos mostra que “nos 30 anos decorridos entre 1980 e 2010 foram assassinadas no país mais de 92 mil mulheres, sendo 43,7 mil só na última década. O número de mortes nesse período passou de 1.353 para 4.465, que representa um aumento de 230%, mais que triplicando o quantitativo de mulheres vítimas de assassinato no país”.
O documento afirma também que este é apenas a ponta do iceberg e que há um “enorme número de violências cotidianas [que] nunca alcança a luz pública”.
Ainda, 26% dos brasileiros acham que mulher de roupa curta merece ser atacada, segundo o Instituto Nacional de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Numa rápida pesquisa no Google, nos deparamos com manchetes do tipo: “a cada dez minutos uma mulher é vítima de estupro no Brasil” e “Brasil registra 50 mil casos de estupro por ano”.
E ainda o “Relatório sobre Violência Homofóbica no Brasil”, publicado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, revela que no ano de 2012 houve 9.982 denúncias de violações dos direitos humanos de pessoas LGBT, bem como pelo menos 310 homicídios de LGBT no país.
Não se trata de um ano atípico, mas sim de um quadro que se repete todos os anos.
Entre diversos estudos sobre preconceito e discriminação em estabelecimentos educacionais, a pesquisa “Preconceito e Discriminação no Ambiente Escolar” (2009), realizada pelo Inep e parceiros, em uma amostra nacional de 18,5 mil estudantes, pais e mães, diretores(as), professores(as) e funcionários(as), revelou que as atitudes discriminatórias mais elevadas se relacionam a gênero (38,2%); orientação sexual (26,1%); étnico-racial (22,9%); e territorial (20,6%).
A discriminação tem relação direta com a evasão escolar, por exemplo, o índice de evasão escolar da população transexual chega a 73% (dados da Antra), devido ao preconceito e violência cotidianamente sofridos nas escolas , praticados por alunos e/ou educadores.
Esse dado expressivo de abandono escolar reflete em uma limitação de escolhas e inserção precarizada no mercado de trabalho.
As escolas precisam ser inclusivas e promover o respeito para que essa população não seja marginalizada desde a adolescência, assegurando educação como possibilidade de emancipação social, econômica e cultural, sobretudo garantindo novas oportunidades de emprego.
A única forma de reverter este quadro desolador é através de uma educação voltada para o respeito. A existência da diferença entre os seres humanos é inegável e esta diversidade precisa ser respeitada!
Vamos aprender a valorizar a beleza da diversidade!
- Porque crianças e adolescentes precisam construir desde cedo noções de respeito, dignidade e cidadania para todas e todos, independente de raça, classe, identidade de gênero, orientação sexual e religião!
- Porque existem crianças que têm outra identidade de gênero e precisam ser acolhidas quando descobrem isso!
- Porque existem adolescentes homossexuais e eles precisam saber que está tudo bem!
- Porque temos que preparar nossas meninas para serem mulheres fortes e autônomas que podem fazer tudo que quiserem!
- Porque as piadinhas homofóbicas e racistas ou as que maculam a imagem das mulheres mitigam a alma da pessoa “zoada” por dentro, dilacera sua confiança em si mesma, faz com que ela não acredite em seu potencial!
É por essas e outras que as professoras e professores precisam de formação e informação para lidarem com estes temas de maneira responsável e o poder público precisa garantir a confecção de materiais didáticos comprometidos com a igualdade de gênero e diversidade!
Algumas controvérsias do debate sobre “Ideologia de gênero” em Campinas
1. “Pela família de Campinas!”. Não estamos querendo destruir a família, pelo contrário! Entendemos que existem hoje novas possibilidades e configurações de família e que TODAS elas deverão ser tratadas com igual respeito.
Mães solteiras, Avós que cuidam dos netos, Pais solteiros, Casais de Gays e de Lésbicas que adotam crianças, Casal hetero que não quer ter filhos, etc, etc, etc, podem se constituir enquanto família. Sim, inclusive a normativa: papai, mamãe e filhinhos. Defender a família é reconhecer os vínculos afetivos que a formam, família é a entidade máxima do carinho, do amor e do cuidado, onde estiver!
2. Não buscamos retirar o direito de cada família, de acordo com suas crenças e concepções de mundo, de educar suas crianças e adolescentes em casa. Esse direito não está em disputa, já é um direito assegurado. Defendemos o acesso a saúde, educação, moradia e lazer de qualidade para todas e todos.
O que debatemos aqui é o papel da ESCOLA que, enquanto outro espaço de educação e socialização, tem o dever de promover uma educação inclusiva, erradicar preconceitos e promover o diálogo e o respeito com a diversidade.
3. A violência existe, não pode ser negada: está expressa em dados estatísticos compilados por órgãos competentes. A saída para combater as desigualdades todos sabemos décor: educação. Portanto, educar para a diversidade se constitui em uma importante ferramenta para que crianças e adolescentes cresçam cada vez mais livres de preconceitos, entendendo que determinados gestos (como piadas homofóbicas e racistas) machucam e geram violência, aprendendo que todos somos diferentes e que a diversidade enriquece.
4. Nenhuma “ideologia” está em disputa. Não queremos impor alguma visão de mundo de mão única. O debate de gênero e orientação sexual visa apenas promover a tolerância e reconhecer a diversidade que JÁ EXISTE (e as novas que possam existir), encarando-a de forma natural, sem discriminação, para que possamos ter uma convivência saudável e cada vez mais igualitária.
5. Nosso Estado é laico e a laicidade garante a livre expressão de religião e de não-religião. Uma escola realmente democrática não pode estar submetida a preceitos de alguma religião específica. Ao contrário, deve incluir e debater a diversidade seja ela religiosa, étnica, sexual, racial, etc.
6. Ideologia de gênero: isso não existe! Há uma grande confusão aqui. Discutir “gênero” e “orientação sexual” não é a imposição de uma ideologia de gênero. É discutir e reconhecer uma realidade social.
7. A desigualdade de GÊNERO existe, é uma realidade expressa em dados. Portanto, debater na escola é importante para entendermos a origem dessa desigualdade com o objetivo de transformá-la.
8. A desigualdade por ORIENTAÇÃO SEXUAL existe, é uma realidade expressa em dados. Portanto, debate na escola é importante para entendermos a origem dessa desigualdade com a ideia de que podemos transformá-la.
9. Proibir o debate é censurar e não contribuir para o combate ao preconceito e à violência cotidianamente vivenciados por mulheres, lésbicas, gays, travestis, trans, dentre outros. Negar a existência dessa diversidade e da desigualdade a que estas pessoas estão submetidas em nossa sociedade é corroborar para a perpetuação da violência!
10. O princípio da igualdade é previsto e garantido por nossa Constituição Federal, o que evidencia o caráter profundamente inconstitucional dessa emenda.
A discussão é sobre a ampliação de direitos e não retirar de uns para dar para outros!
A discussão é sobre reconhecimento da diversidade!
A discussão é sobre igualdade de direitos!
Fonte: https://marchavadiascampinas.milharal.org