quarta-feira, 29 de abril de 2015

Expectativa de vida de trans no Brasil é de 30 anos, diz resportagem da Al Jazeera

A partir do assassinato de travesti, rede de TV do Catar fez uma ampla reportagem sobre o tema com dados do grupo o grupo Transrevolução, sediado no Rio de Janeiro.

Traduzido da matéria de Donna Bowater e Priscilla Moraes para o site Al Jazeera

A expectativa de vida de trans no Brasil é de 30 anos

Duas sacolas plásticas sujas continham a fantasia de Carnaval em que a travesti Piu (cujo nome de registro era Claudio da Silva) trabalhava antes de ser torturada e morta. Em uma estava uma montanha de fios de contas brilhantes, na outra, um vestido vermelho bordado.
Travesti desde a infância, Piu era conhecida como um homem de 24 anos e como uma sambista, dançarina de passos rápidos na Beija-Flor, vencedora do Desfile de Escolas de Samba do Rio de Janeiro esse ano.
“Meu filho era um anjo, e seu negócio era apenas o samba”, relatou Ângela Maria da Silva, sua mãe, à Al Jazeera, com seu corpo emaciado empoleirado como um pássaro na entrada da casa humilde de sua família numa favela controlada por gangues.
“Acabou tudo para mim agora. Eu não tenho mais felicidade. Às vezes eu passo as primeiras horas da manhã chorando.”

Transfobia generalizada
Piu é mais um do número crescente de vítimas transgênero no Brasil, o país com o maior número de pessoas transgênero assassinadas no mundo, de acordo com pesquisa feita pelo grupo Transgender Europe. “O Brasil permanece o país com os números absolutos mais altos”, aponta Carla LaGata, pesquisadora-chefe na Transrespect versus Transphobia Worldwide (TvT) e pesquisadora sênior na Transgender Europe.
O número de mortes por homofobia e transfobia no Brasil aumentou de 1023 em 1995 para 1243 em 2003, de acordo com o Grupo Gay da Bahia, primeira organização de luta pelos direitos de gays do Brasil.
Mas esses números, alertam, só contabilizam as mortes relatadas e documentadas; a quantidade verdadeira de crimes certamente é maior.
Diferente de muitas outras, a morte de Claudio em janeiro ganhou as manchetes depois que um vídeo mostrando sua tortura foi colocado no Facebook.
Nele, sangrando e confuso, Piu implora para pelo menos dois homens pararem de espancá-la enquanto eles tentam arrancar dela uma confissão de que ele trabalharia para uma milícia como informante.
Seu corpo foi encontrado com facadas e seis ferimentos de bala. Ninguém foi preso por seu assassinato.
“Parece que ele trabalhava para alguma milícia?”, pergunta Luiz Henrique dos Santos, em frente ao quarto que foi da cunhada. Um colchão fino de espuma estende-se no chão de concreto do quarto pequeno e sem janelas.
A família não conta com água encanada e um lençol é tudo que garante alguma privacidade em sua casa.
“Todo mundo aqui sabia que ele não estava envolvido”, conta Silva. “Quando alguém te força, você diz coisas que não fez.”
Para sua família, a morte de Piu não tem explicação.
As opiniões estão divididas em sua amada escola de samba, Beija-Flor de Nilópolis.
Há aqueles que concluem que Piu estava sim envolvido com alguma milícia, e há aqueles que suspeitam que ele foi vítima de transfobia.
No vídeo, um de seus atacantes chega a usar o xingamento “arrombado”.
“Tem que ter sido discriminação das pessoas que mataram ele”, especula Carlos Vinícius dos Reis, porteiro da Beija-Flor.
“Eu não acredito que ele estava envolvido com uma milícia. Eles forçaram ele a dizer essas coisas”, disse.
Apesar de todos na Beija-Flor negarem enfaticamente que têm preconceitos contra pessoas trans, alguns admitem que Piu e outras dançarinas trans eram consideradas por alguns motivo de chacota ou de escárnio.

Roupas malucas”
“Você tem que ver uma foto dele na pista, como ele se vestia, pra ver como ele era maluco”, lembra o percussionista Jean Pierre da Silva, 19.
“Ele vestia roupas engraçadas, uma peruca diferente todo dia, penas na cabeça, maquiagem maluca – ele parecia um palhaço de festa infantil.”
“Pessoas trans são tratadas normalmente”, insiste. “Mas tem umas que, porque são trans, acham que todos os homens da pista gostam. Elas acham que podem ficar passando a mão, daí rola briga.”
De acordo com o relatório da Transgender Europe, uma das razões para a alta quantidade de assassinatos de trans no Brasil é a transfobia generalizada que emergiu durante a ditadura, que durou de 1964 a 1985, depois que o presidente João Goulart foi deposto por um golpe militar.
“Pessoas de gêneros alternativos/trans tornaram-se um alvo da repressão militar, já que eram vistas como uma ameaça aos ‘valores da família brasileira'”, aponta o relatório.
Muitas pessoas transgênero foram forçadas a se prostituir porque eram marginalizadas e discriminadas no local de trabalho e lhes restavam poucas outras oportunidades.
Como resultado, prostitutas são o maior grupo de vítimas de violência nas Américas Central e do Sul, alerta o relatório.
Se antes o termo “travesti” era associado com atores de teatro transgênero populares, aceitos publicamente, a ditadura realinhou o termo com a prostituição e o crime.
“A polícia militar continuou a caçar pessoas de gêneros alternativos/trans, agora com o apoio dos ditos esquadrões da morte e grupos justiceiros”, continua o relatório.

Expectativa de vida
Estima-se que a expectativa de vida para pessoas trans no Brasil seja de por volta de 30 anos, de acordo com o grupo Transrevolução, sediado no Rio de Janeiro, que luta pelos direitos de pessoas transgênero. A expectativa de vida média do brasileiro é de 75 anos.
A ex-chefe da Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República, Ideli Salvatti, diz que grupos LGBT culpam a falta de legislação como a principal razão da violência contra brasileiros gays e transgênero, e afirma que o governo está tentando corrigir isso.
“Um projeto de lei que criminaliza a homofobia e a transfobia tem todo o apoio da presidente Dilma Roussef”, Salvatti afirmou à Al Jazeera.
“Eu sou contra qualquer tipo de violência contra as pessoas. No caso específico da homofobia, eu acho que é uma ofensa contra o Brasil. Eu acho que nós temos que criminalizar a homofobia, isso não é algo com que nós podemos conviver.”
Salvatti, que recentemente deixou o cargo, também disse que o segundo centro de direitos LGBT do país será inaugurado em São Paulo nos próximos meses, e que o Ministério da Educação agora aceitará o nome social dos alunos nos exames vestibulares, ao invés de insistir nos nomes de nascimento.
“Nós criamos políticas públicas direcionadas a promover os direitos LGBT da população, mas é essencial que haja uma legislação específica”, continuou Salvatti.
Mas um coordenador governamental do Rio de Janeiro, que pediu para não ser identificado, disse que a lei contra a homofobia foi engavetada.
“Há muitos obstáculos”, afirmou o funcionário público, que é um ativista LGBT há 20 anos.
“Nunca houve vontade política de se votar nesse projeto. Enquanto não houver uma posição pública forte e clara do nosso governo sobre a impunidade desses crimes, milhões de cidadãos e suas famílias vão continuar à mercê desse ódio, que pode nos acertar a qualquer dia.”

Não sei se estou viva amanhã”
Maria Clara Araújo, 18, a primeira transexual negra a entrar numa universidade federal do Brasil, apontou que o apoio de sua família foi essencial não apenas para que ela conseguisse alcançar suas ambições acadêmicas, mas também para sua segurança.
“Eu não acho que minha mãe jamais me deixaria sozinha”, afirma Araújo, hoje estudante de pedagogia na Universidade Federal do Pernambuco.
“Eu estou ciente de que minha expectativa de vida é de 30 anos e eu preciso que alguém me proteja. Se eu não tivesse a ajuda da minha mãe e do meu pai, eu provavelmente teria que me prostituir para me sustentar.”
Ela disse que a realidade das pessoas transgênero seria muito diferente se lhes fossem dados os direitos essenciais.
“Se nós tivéssemos lares, emprego, uma educação, nós não teríamos tanta tendência [de viver nas ruas]. Se as famílias apoiassem e dessem uma chance para essas meninas, elas morreriam menos.”
Para Piu, o pouco dinheiro que ele ganhava fazendo bicos era gasto no samba, seu primeiro amor.
Além da Beija-Flor, sua família lembra que ele também participava de algumas das maiores escolas de samba da cidade, como a Imperatriz, Salgueiro e Mocidade.
“Se tem uma coisa que ele gostava mais do que samba, isso ainda não foi inventado”, afirma Luiz.
Ele não fazia planos, lembraram seus familiares. Ele ia para a escola, mas não estudava. “Ele só pensava sobre o dia de hoje”.
“Eu costumava dizer para ele, ‘economiza um dinheiro'”, disse sua irmã, Monica, à Al Jazeera.
“Mas ele não economizava. Ele dizia que tinha que gastar tudo. ‘Ah, eu não sei se vou estar vivo amanhã’, ele dizia.”

Fonte:http://www.ladobi.com/



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