Marcos
amava Fabio que sonhava em ter um filho. Sem planejar, o casal acabou
adotando dois. Carol queria ser mãe, e Kika também. Lilian não
tinha namorado ou marido, mas resolveu engravidar. A mãe foi a
companhia em todas as consultas médicas. Com Adriano, não conhecer
pessoalmente os sogros e ter tido uma educação bem diferente da
mulher, a canadense Eve, não foram motivos para impedir o casamento
deles. Fabiana tinha dois filhos; Gian, outros dois. Foram morar
juntos com os quatro, a mãe dela, e ainda tiveram mais dois meninos.
Estas histórias, que você conhece aqui embaixo, talvez até sejam
difíceis de serem entendidas logo de primeira, mas representam
algumas das configurações familiares cada vez mais comuns no
Brasil, que já ultrapassam, segundo o último Censo do IBGE, o
tradicional núcleo mãe, pai e filho.
— São
arranjos que, de uma forma ou de outra, já existiam, mas não eram
expostos ou as pessoas preferiam não comentar — analisa a
psicanalista Mônica Donetto Guedes, autora do livro “Em nome do
pai, da mãe e do filho’’, que destaca a importância do debate
dentro e fora do contexto familiar. — Acho que só assim é
possível amenizar os problemas, que serão inevitáveis em formações
tão diversas e complexas.
Se
antes eram assunto tabu, as novas famílias servem de inspiração
para novelas como “Babilônia”. Em contrapartida aos fatos reais
e da ficção, um polêmico projeto de lei, denominado Estatuto da
Família e “ressuscitado” na Câmara dos Deputados, determina que
somente a união entre um homem e uma mulher pode constituir uma
família, proibindo a adoção por casais homoafetivos. O resultado
de uma enquete do portal da Câmara, no ar desde o mês passado,
mostra que 53% dos que responderam concordam com a definição de
família proposta pelo projeto.
— Os
desafios tendem a ser minimizados ao longo do tempo, mas o
preconceito existe e é preciso um cuidado especial com as crianças
que têm famílias fora do convencional — diz Junia Vilhena,
professora de Psicologia Clínica da PUC-Rio.
Enquanto
isso, internautas se mobilizam contra o estatuto usando hashtags
como
#emdefesadetodasasfamílias e #nossafamiliaexiste.
— O
casamento não deve ser encarado como uma questão de gênero. O elo
do afeto é que caracteriza uma família — opina Carlos Tufvesson,
coordenador especial da Diversidade Sexual da Prefeitura do Rio,
casado há 20 anos com o arquiteto André Piva.
— Não
dá para fechar os olhos para a realidade. Estas famílias existem,
estão solidificadas e merecem respeito — afirma a advogada
Patrícia Gorisch, presidente da Comissão Nacional de Direito
Homoafetivo do Instituto Brasileiro de Direito de Família.
Família Motta Machado
Família Motta Machado
A
chegada de Tereza foi exatamente como o planejado: em casa, no bairro
de Laranjeiras, numa tarde de agosto. Sob a supervisão da enfermeira
obstétrica Heloísa Lessa e ao som de Frédéric Chopin, Carol
sentiu as primeiras contrações durante a manhã. Ao longo de três
horas, andou de um lado para o outro, se acalmou sentada na cadeira
de balanço e achou conforto em cima de uma bola de pilates. Ao lado
dela durante todo o trabalho de parto, sem anestesia, estava Kika,
também mãe de Tereza.
— Era
tanta expectativa e emoção que não dá nem pra descrever o que
sentimos — conta a atriz e artista visual Kika Motta, de 33 anos,
mãe de primeira viagem, como a mulher, a atriz e bailarina Carol
Machado.
Carol
é facilmente reconhecida. Fez sucesso em novelas como “Top Model”
e “Vamp”, exibidas pela TV Globo entre o fim dos anos 80 e início
dos 90, quando ainda era uma adolescente. Na novela que tinha Malu
Mader como protagonista, ela era Jane Fonda, uma das filhas do
surfista Gaspar, divertido personagem do ator Nuno Leal Maia.
Carol
e Kika se conheceram tempos depois, quando eram vizinhas, mas só
começaram a namorar após um reencontro, entre uma e outra postura
nova aprendida numa aula de ioga. Há oito anos, dividem o mesmo
teto.
— Sempre
pensamos em ser mães e ficar grávidas. Por uma questão de idade, a
escolhida para engravidar primeiro fui eu — explica Carol, de 39
anos, que se submeteu a três inseminações com esperma de doador
anônimo.
O
tratamento teve início três anos atrás numa clínica em São
Paulo. Na primeira tentativa, Carol engravidou, mas perdeu o bebê
aos quatro meses de gestação. A segunda não deu certo e, na
terceira, veio Tereza, uma linda e sorridente menina de olhos azuis,
que nasceu com três quilos e 49 centímetros.
— Como
não conhecíamos outro casal que tivesse passado pelo mesmo
processo, o caminho foi bem mais difícil— lembra Kika.
As
duas revelam que têm forte ligação com seus respectivos pais e que
pensavam muito em como seria criar uma criança sem a figura paterna.
Estudaram muito, consultaram especialistas e fizeram novas amigas e
amigos com histórias semelhantes.
Antes
do nascimento da filha, prepararam um verdadeiro dossiê, organizado
com a ajuda do pai de Kika, que é advogado. Na mesma pasta, reuniram
a união estável das duas e relatórios dos profissionais que
acompanharam o tratamento e o parto, além de menções aos casos de
famílias formadas por casais gays que, em outros estados do Brasil,
conseguiram, sem qualquer dificuldade, a certidão de nascimento dos
filhos no nome deles.
— Fomos
o primeiro casal homoafetivo do Rio a conseguir o registro de
nascimento direto no cartório, sem precisar recorrer à Justiça.
Foi uma conquista e tanto — comemora Carol, que deu à Tereza os
sobrenomes menos conhecidos das mães: Rezende Eichler.
Aos
7 meses, Tereza Rezende Eichler começa a engatinhar e descobrir
novos cantos da casa onde a família mora com os gatos Café, Cuca e
Gaia. Tereza dorme num futton
no
chão do quarto, que foi decorado pelas mães com diferentes peças
de artesanato, como os planetas comprados em Londres que estão
pendurados no teto e personagens do Circo Nacional da China, presente
de um amigo, que enfeitam a parede. Em cima de uma cômoda ficam
várias fotos das três.
Enquanto
Carol amamenta e curte a licença-maternidade bem pertinho da filha,
Kika, que adora cozinhar, faz o último ano do curso de Escultura na
UFRJ. As duas têm uma companhia de teatro e dança, a Finis Cinis, e
planejam trabalhos juntas.
Com
Tereza, elas vibram com cada novidade, como a chegada do primeiro
dentinho e a estreia na aula de natação, na semana passada. Mas
também não escondem que ainda ficam desconfortáveis ao falar da
vida pessoal.
— A
gente não tem obrigação de ficar o tempo todo dando satisfação
pra todo mundo. Dependendo da abordagem, pode incomodar, sim —
conta Carol, lembrando do dia em que pensaram que Kika era babá de
Tereza ou quando ela mesma foi questionada sobre “quem era o que da
menina’’.
— As
pessoas precisam entender que a família tem um significado muito
mais amplo e que envolve um sentimento lindo: o amor — resume Kika,
que já se prepara para engravidar no ano que vem. — Agora vai ser
a minha vez.
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